O mundo é duplo
para o homem, segundo a dualidade de sua atitude. A atitude do homem é dupla de
acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir.
As
palavras-princípio não são vocábulos isolados, mas pares de vocábulos.
Uma
palavra-princípio é o par Eu-Tu. A outra é o par Eu-Isso no qual, sem que seja
alterada a palavra-princípio, pode-se substituir Isso por Ele ou Ela.
Deste modo, o Eu
do homem é também duplo.
*
Pois, o Eu da
palavra-princípio Eu-Tu é diferente daquele da palavra princípio Eu-Isso.
As palavras-princípio
não exprimem algo que pudesse existir fora delas, mas uma vez proferidas elas
fundamentam uma existência.
As
palavras-princípio são proferidas pelo ser.
Se se diz Tu
profere-se também o Eu da palavra-princípio Eu-Tu. Se se diz Isso profere-se
também o Eu da palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu só pode ser
proferida pelo ser na sua totalidade.
*
A
palavra-princípio Eu-Isso não pode jamais ser proferida pelo ser em sua totalidade.
Não há Eu em si,
mas apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-princípio Eu-Isso.
Quando o homem diz
Eu, ele quer dizer um dos dois. O Eu ao qual se refere está presente quando ele
diz Eu. Do mesmo modo quando ele profere Tu ou Isso, o Eu de uma ou outra
palavra-princípio está presente.
Ser Eu, ou
proferir a palavra Eu são uma só e mesma coisa. Proferir Eu ou proferir uma das
palavras-princípio são uma ou a mesma coisa.
Aquele que profere
uma palavra-princípio penetra nela e aí permanece.
*
A vida do ser
humano não se restringe apenas ao âmbito dos verbos transitivos. Ela não se
limita somente às atividades que têm algo por objeto. Eu percebo alguma coisa.
Eu experimento alguma coisa, ou represento alguma coisa, eu quero alguma coisa,
ou sinto alguma coisa, eu penso em alguma coisa.
A vida do ser
humano não consiste unicamente nisto ou em algo semelhante.
Tudo isso e o que
se assemelha a isso fundam o domínio do Isso.
O reino do Tu tem,
porém, outro fundamento.
*
Aquele que diz Tu
não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde há uma coisa há também outra coisa;
cada Isso é limitado por outro Isso; o Isso só existe na medida em que é
limitado por outro Isso. Na medida em que se profere o Tu, coisa alguma existe.
O Tu não se confina a nada.
Quem diz Tu não
possui coisa alguma, não possui nada. Ele permanece em relação.
*
Afirma-se que o
homem experiência o seu mundo2. O que isso significa? O homem explora a superfície
das coisas e as experiencia. Ele adquire delas um saber sobre a sua natureza e
sua constituição, isto é, uma experiência. Ele experiência o que é próprio às
coisas.
Porém, o homem não
se aproxima do mundo somente através de experiências.
Estas lhe
apresentam apenas um mundo constituído por Isso, Isso e Isso, de Ele, Ele e
Ela, de Ela e Isso.
Eu experiencio
alguma coisa.
Se acrescentarmos
experiências internas às externas, nada será alterado, de acordo com uma fugaz
distinção que provém do anseio do gênero humano em tornar menos agudo o
mistério da morte. Coisas internas, coisas externas, coisas entre coisas!
Eu experiencio uma
coisa.
E, por outro lado,
se acrescentarmos experiências "secretas" às experiências
"manifestas", nada será alterado de acordo com aquela sabedoria autoconfiante
que apreende nas coisas um compartimento fechado, reservado aos iniciados cuja
chave ela possui. Oh! Mistério sem segredo. Oh! Amontoado de informações! Isso,
Isso, Isso!
*
O experimentador
não participa do mundo: a experiência se realiza "nele" e não entre
ele e o mundo.
O mundo não toma
parte da experiência.
Ele se deixa
experienciar, mas ele nada tem a ver com isso, pois, ele nada faz com isso e
nada disso o atinge.
*
O mundo como
experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu
fundamenta o mundo da relação.
*
O mundo da relação
se realiza em três esferas. A primeira é a vida com a natureza. Nesta esfera a
relação realiza-se numa penumbra como aquém da linguagem. As criaturas movem-se
diante de nós sem possibilidade de vir até nós e o Tu que lhes endereçamos
depara-se com o limiar da palavra.
A segunda é a vida
com os homens. Nesta esfera a relação é manifesta e explícita: podemos
endereçar e receber o Tu.
A terceira é a
vida com os seres espirituais. Aí a relação, ainda que envolta em nuvens, se
revela, silenciosa, mas gerando a linguagem. Nós proferimos, de todo nosso ser,
a palavra-princípio sem que nossos lábios possam pronunciá-la.
Mas como podemos
incluir o inefável no reino das palavras-princípio?
Em cada uma das
esferas, graças a tudo aquilo que se nos torna presente, nós vislumbramos a
orla do Tu eterno, nós sentimos em cada Tu um sopro provindo dele, nós o
invocamos à maneira própria de cada esfera.
*
Eu considero uma
árvore.
Posso apreendê-la
como uma imagem. Coluna rígida sob o impacto da luz, ou o verdor resplandecente
repleto de suavidade pelo azul prateado que lhe serve de fundo.
Posso senti-la
como movimento: filamento fluente de vasos unidos a um núcleo palpitante,
sucção de raízes, respiração das folhas, permuta incessante de terra e ar, e
mesmo o próprio desenvolvimento obscuro.
Eu posso
classificá-la numa espécie e observá-la como exemplar de um tipo de estrutura e
de vida.
Eu posso dominar
tão radicalmente sua presença e sua forma que não reconheço mais nela senão a
expressão de uma lei — de leis segundo as quais um contínuo conflito de forças
é sempre solucionado ou de leis que regem a composição e a decomposição das
substâncias.
Eu posso
volatilizá-la e eternizá-la, tornando-a um número, uma mera relação numérica.
A árvore
permanece, em todas estas perspectivas, o meu objeto tem seu espaço e seu
tempo, mantém sua natureza e sua composição.
Entretanto pode
acontecer que simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao observar
a árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela já não é mais um
Isso. A força de sua exclusividade apoderou-se de mim.
Não devo renunciar
a nenhum dos modos de minha consideração. De nada devo abstrair-me para vê-la,
não há nenhum conhecimento do qual devo me esquecer. Ao contrário, imagem e
movimento, espécie e exemplar, lei e número estão indissoluvelmente unidos
nessa relação.
Tudo o que
pertence à árvore, sua forma, seu mecanismo, sua cor e suas substâncias
químicas, sua "conversação" com os elementos do mundo e com as estrelas,
tudo está incluído numa totalidade.
A árvore não é uma
impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta
"em pessoa" diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que
de modo diferente, tenho algo a ver com ela.
Que ninguém tente
debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade.
Teria então a
árvore uma consciência semelhante à nossa? Não posso experienciar isso. Mas
quereis novamente decompor o indecomponível só porque a experiência parece ter
sido bem sucedida convosco? Não é a alma da árvore ou sua dríade que se
apresenta a mim, é ela mesma.
Trecho do Livro "Eu e Tu" de Martin Buber
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Trecho do Livro "Eu e Tu" de Martin Buber
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